Uma análise sobre “O Príncipe”, de Maquiavel

Estátua de Maquiavel em Florença, de autoria do escultor Lorenzo Bartolini
 

A teoria política moderna, da qual nos valemos para realizar o exercício da análise dos fatos políticos passados e presentes, bebe diretamente na fonte das ideias e conceitos formulados durante o período renascentista no continente europeu na passagem entre os séculos XV e XVI pelo diplomata florentino Nicolau Maquiavel.

Maquiavel teve seu momento de maior prominência na vida pública durante o período de governo do gonfaloniere Piero Soderini sobre a república florentina, entretanto, após a restauração dos Médici, Maquiavel foi posto no ostracismo, sendo obrigado a viver recluso na periferia rural de Florença, nunca mais tornando a ocupar um posto de destaque na política local.

Foi durante esse período de reclusão forçada que o teórico escreveu seus textos de maior expressão como A arte da Guerra e Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Dentre essas, está a obra de ciência política mais lida e citada desde a História Moderna, “O Príncipe”. A escrita desse texto foi dedicada a Loureço de Médici, governante de Florença à época. Para alguns, esse ato significava a intenção clara e manifesta de Maquiavel em angariar politicamente seu retorno à estrutura governamental de Florença.

Em “O Príncipe”, Maquiavel constitui uma espécie de manual prático de como um soberano deve se comportar, com vistas a conquista e manutenção do poder, elencando uma série de características necessárias à boa prática da política. Ressalte-se que essa boa prática não está relacionada a valores que cultivamos no nosso tempo presente, onde o ente político é valorado pelas suas ações a partir de uma outra ética. Em função disso, pela prática equivocada de anacronismos históricos, a obra de Maquiavel é mal compreendida e mal conceituada por alguns, atribuindo ao autor ideias negativas que não lhe cabem dentro do seu tempo histórico.

Dois personagens desse período são citados por diversas vezes durante a escrita de O Príncipe. O primeiro deles é Rodrigo Bórgia, mais conhecido como o papa Alexandre VI. De origem espanhola, Bórgia, na condição de papa, era o governante dos estados papais, parte significativa do território da península itálica e figura ativa nas movimentações geopolíticas de conquista e perca de territórios na região. O segundo é César Bórgia, filho de Alexandre VI e proeminente comandante militar daquele período, atuando como o maior representante dos interesses da política expansionista de seu pai. César serviu de inspiração para o título da obra de Maquiavel, que reconhecia claramente a virtude presente em seu comportamento político e militar.

Nesse guia de ação política, Maquiavel irá romper com a tradição idealística clássica, pondo a natureza humana como elemento central do debate e da construção das formas de intervenção política. Num trecho do último capítulo de O Príncipe, o autor vai falar o seguinte, “ Deus não quer fazer todas as coisas, para não nos tolher o livre-arbítrio e parte daquela glória que nos cabe”. Esse trecho é sintomático sobre o momento de transição que caracteriza o período renascentista em que se desenvolve a superação do feudalismo, onde a cultura do pensamento humano estava fundada quase que totalmente em desígnios religiosos. Sendo assim, Maquiavel sugere a explicação da política através da própria política e não da religião.

De acordo com a característica de manual prático de conduta para o exercício da soberania que é O Príncipe, Maquiavel determina duas características que são condição sine qua non para o exercício da boa política, de acordo com os valores da época, são elas:a virtude e a fortuna. A virtude consistiria na capacidade que o soberano precisa ter no sentido de manter uma correlação de forças favorável para a manutenção do seu poder. Essa capacidade é a mais importante na concepção de Maquiavel, pois ela depende unicamente da aptidão do indivíduo em compreender a realidade concreta e trabalha-la da forma mais adequada a obtenção do sucesso. Por sua vez, a segunda característica apresentada é a da fortuna, que corresponde a capacidade do Príncipe em se aproveitar das condições favoráveis do ambiente, quando as mesmas existirem. Fazendo uma analogia simples, Maquiavel vai traduzir a fortuna como uma embarcação que se aproveita do vento favorável e direciona suas velas corretamente de forma a aproveitar totalmente o benefício do vento a favor, considerando, claro, que esta é uma condição que foge do controle da própria ação, cabendo apenas saber interpreta-la e tirar os proveitos possíveis.

Maquiavel vai dizer também que a política pode ser controlada até certo ponto, deixando um espaço para o imponderável, que pode agir de forma a comprometer a ação, por mais virtuosa que ela seja. Para diminuir as possibilidades de insucesso ao extremo, o autor apresenta duas facetas que devem fazer parte da personalidade do Príncipe. Para ele, o soberano deve ter ao mesmo tempo a força característica de um leão e a astúcia de uma raposa, devendo lançar mão de cada uma dessas características da forma e no momento adequados, pois, para ele, a força (leão) é o fundamento para a obtenção do poder, porém, a astúcia (raposa) é elemento necessário para a manutenção desse poder, conforme o seguinte trecho. “E, posto que é necessário a um príncipe saber usar do animal com destreza, dentre todas ele deve escolher a raposa e o leão, pois o leão não pode defender-se de armadilhas, a raposa é indefesa diante dos lobos; é preciso, pois, ser raposa para conhecer as armadilhas e o leão para afugentar os lobos”.

Sobre a condição do soberano em relação a seus súditos, durante a escrita são apresentados uma série de cenários em que se dá essa relação a parir da forma de regime e da maneira como se ascende à soberania. Dessa forma, entre ser amado e temido, Maquiavel aconselha que é favorável antes ser temido que amado, pois, pela natureza má do homem, segundo sua perspectiva, a capacidade de conservar o amor de seus súditos estará condicionada pelo cenário posto, sendo algo extremamente volátil. Enquanto que o temor não varia com o cenário, aumentando a possibilidade de controle da situação por parte do príncipe. Dito isso, deve-se ter cuidado para que esse temor não se transforme em ódio, pois, fomentar o ódio de seu povo é a condição mais crítica à manutenção do seu poder.

Por fim, Maquiavel faz a crítica a falta de centralização política da península itálica, a qual só foi unificada em medos do século XIX. Para o autor, essa é a principal razão para os contínuos espólios sofridos e citados na obra, principalmente por parte dos reinos da Espanha e França, países de unificação em estados nação bem anteriores à Itália. Maquiavel apresenta a necessidade de que Lourenço de Médici se ponha como o construtor dessa unificação nacional.

Como dito anteriormente, a interpretação literal da escrita de Maquiavel pode induzir ao erro na análise e no valor das suas teses. É importante que consigamos extrair o fundamento do que está além das suas palavras e, dessa forma, nos apropriarmos de um ganho teórico e interpretativo para na nossa melhor ação política cotidiana.

REFERÊNCIAS:

Maquiavel, Nicolau, 1469-1527. O Príncipe / Nicolau Maquiavel ; tradução de Maurício Santana Dias ; prefácio de Fernando Henrique Cardoso ; tradução dos apêndices de Luiz A. de Araújo. – São Paulo ; Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.

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