Desde a antiguidade até a constituição da noção de direitos inalienáveis ao homem os crimes eram punidos, a depender da gravidade atribuída, com a pena de morte em “espetáculos” realizados em praças públicas. Dentre os componentes desses processos executórios um tinha a tarefa de pôr um fim físico a vida do condenado, esse elemento era o carrasco. O carrasco normalmente era alguém saído do mesmo contexto de vida dos condenados e dos condenados em potencial que compunham o público presente a cada evento desse tipo. A espetacularização da morte funcionava como um alerta, um exemplo do que poderia lhes acontecer se dessem um passo em falso e contrariassem a ordem imposta pela nobreza. Diante disso o carrasco se apresentava de rosto coberto, já que ao final da sua tarefa ele teria que voltar a mesma realidade de vida das suas vítimas.
A escravidão moderna, fruto do processo de estabelecimento do modo capitalista de produção, teve como base inicial da sua força de trabalho homens e mulheres negras, retirados da África e trazidos ao Novo Mundo para serem incorporados ao regime de trabalhos forçados nas minas e nas grandes fazendas de plantação de monoculturas. Dentre esses indivíduos alguns se destacavam por trabalhar como executores das ordens dos senhores contra outros negros, exercitando a vigilância e aplicando atos punitivos determinados pelo escravocrata contra pessoas da mesma origem que a sua e que se rebelavam contra a exploração que sofriam. A esse elemento era atribuída a alcunha de capitão do mato, ou capanga, termo que permanece vivo representando aqueles indivíduos explorados que ainda hoje executam as ordens dos grandes oligarcas contra outros explorados nos rincões do Brasil.
À sociedade burguesa, a partir da consolidação do estado de direito, não caberia mais o exercício de formas de opressão de uns sobre outros, afinal de contas, todos os seres humanos nasceriam livres e iguais em dignidade e em direitos. Porém, esse conceito ideal sempre esteve e permanece distante da realidade concreta. A sociedade burguesa, pautada pelo capitalismo, produz e reproduz desigualdades, aliena os indivíduos do processo produtivo e concentra nas mãos de uma parcela ínfima da população o produto das riquezas produzidas pela maioria, que, por sua vez, têm que disputar entre si as migalhas que caem das mãos dos poderosos. Diante da farsa da igualdade de direitos naturais, e da necessidade da burguesia em manter o estado de coisas sem comprometer seu discurso, alguns instrumentos foram criados para a manutenção da ordem a partir dos interesses da classe dominante. Neste sentido, a função primordial exercida pelas forças de segurança ostensiva, materializada no Brasil pelas polícias militares, é a de exercer um processo de coerção travestindo-se com uma aura de reguladora da ordem e do bom funcionamento social, partindo do pressuposto de que, se todas as pessoas são iguais em direitos, aquelas que fogem ao ordenamento legal devem ser reprimidas por comprometer o bem-estar e o bom funcionamento dessa sociedade.
A sociedade burguesa se especializou, antes de qualquer outra coisa, em manipular os fatos conforme as necessidades de manutenção do seu status quo, dessa forma, uma série de instrumentos, entre eles a imprensa, serviram e servem como mecanismos de adequação do discurso, da narrativa, como meio de controle das contradições entre o que essa sociedade promete e o que ela produz na vida da grande maioria das pessoas. Neste sentido, se torna mais difícil de compreender a natureza real do papel desempenhado por instrumentos como as polícias do que o papel exercido pelos personagens citados anteriormente, os quais, ninguém em sã consciência discute a natureza perversa da função que executavam.
Diante desse quadro é necessário que fatos como o que ocorreram recentemente em São Paulo, na comunidade de Paraisópolis, não sejam interpretados como pontos fora da curva, nem como fruto de um equívoco na abordagem policial. Na verdade, é necessário que interpretemos os fatos a partir da natureza do que representa o instrumento policial na história da sociedade brasileira. Não é à toa a diferença no tratamento dado pelos seus integrantes a partir da cor da pele e do poder econômico, fato assumido tranquilamente por um comandante da polícia de São Paulo em entrevista recente, onde o mesmo afirmou que a orientação geral do comando é para que a forma de abordagem realizada nos Jardins, bairro nobre da capital, seja diferenciada da abordagem realizada numa comunidade popular. As polícias devem ser compreendidas como um instrumento da burguesia que captura seus executores dentro da mesma classe de explorados, afinal, no conflito entre o “policial bonzinho” e o “bandido mauzinho” uma coisa é certa, só morrerão pessoas oriundas das classes sociais mais baixas da sociedade. Por fim, é necessário que tenhamos em mente que a polícia é um braço armado da burguesia, e que elas, as PMs, nunca servirão de fato à sociedade enquanto esse Estado for controlado por essa burguesia que explora, espolia e manda matar.
1° Encontro Nacional Pelo Direito de Torcer (Porto Alegre)
No último final de semana o Clube de Regatas do Flamengo, time mais popular do futebol brasileiro, voltou a vencer a Taça Libertadores da América após 38 anos. Em 1981, ano da primeira conquista, o time carioca tinha no elenco craques como Júnior, Adílio, Andrade, Leandro, Nunes e, principalmente, Zico. Muito da popularidade do clube a nível nacional se deve a essa geração de jogadores que dominou o futebol brasileiro na primeira metade da década de 1980, época em que as transmissões de futebol começaram a se tornar parte da grade das principais emissoras de TV.
Ao final do jogo que garantiu a
conquista flamenguista, realizado na cidade de Lima, contra o River Plate da
Argentina, uma cena chamou bastante atenção. O governador do Rio de Janeiro,
Wilson Witzel, entrou em campo e se ajoelhou aos pés de Gabriel Barbosa, o
“Gabigol”, autor dos dois gols que deram a vitória ao time. A reação de Gabriel
foi nitidamente de desprezo, saindo de lado e deixando Witzel em situação de
ridículo. Minutos depois o mesmo atleta aparece numa foto abraçado ao
governador que, no dia seguinte, desembarcou do avião junto com os jogadores e
se comportou publicamente como se parte da reação da massa de torcedores que
receberam o time de volta fosse também em sua homenagem, um claro gesto de
apropriação da conquista esportiva para fins políticos.
No Brasil e no mundo são inúmeras
as ocasiões em que esporte mais popular do planeta foi utilizado para reforçar
imagens de líderes políticos, ou como forma simular algum nível de
popularidade, como no caso do governador do Rio.
O esporte surgiu na Inglaterra na
segunda metade do século XIX, muito ligado à atividade fabril. Nessa época, os
capitalistas viam no jogo uma forma de controlar a classe operária, evitando
que ela extravasasse os efeitos da exploração capitalista e colocasse em risco
a estrutura social da burguesia. Neste sentido, muitos dos clubes mais
tradicionais do futebol britânico encontram-se em cidades com histórico
industrial ou portuário, é o caso de Manchester, Leeds, Liverpool, Southampton,
entre outras.
Com a ascensão do fascismo clubes
populares foram apropriados pelo regime como meio de propaganda. Na Itália, a
Lazio de Roma era o time de preferência de Benito Mussolini. O clube faz
contraponto à Roma, time identificado com o proletariado da cidade.
Curiosamente, do ponto de vista esportivo a Lazio não obteve grande sucesso com
a ligação afetiva do Duce. Seus dois títulos nacionais foram ganhos em épocas
bem posteriores. Por outro lado, do ponto de vista ideológico os vínculos com o
fascismo ainda são amplos nas manifestações da torcida “laziali”. Em 2001, num
clássico contra a Roma, foi estendida uma faixa no meio da torcida com a frase
“squadra di neri” (time de negros), em referência a jogadores como Cafu,
Aldair, Marcos Assunção e Emerson, brasileiros negros que jogavam na Roma. Mais
recentemente, em partida pela Liga Europa, enquanto torcedores da Lazio
entoavam cantos fascistas nas arquibancadas do Glasgow Celtic, da Escócia, os
britânicos estenderam um mosaico com a representação do enforcamento de
Mussolini. O mais grave é que só o Celtic foi punido pela UEFA em virtude da
manifestação da sua torcida. Talvez o vínculo mais característico do time
italiano com a ideologia fascista seja representado por um ex-jogador seu,
Paolo Di Canio, que a cada gol estendia o braço direito com a mal espalmada em
direção a torcida, exatamente o mesmo gesto do regime.
Na Alemanha Hitler foi mais
pragmático, mas não deixou de usar o futebol como instrumento de propaganda e
de auto popularização. Na época da ascensão do nazismo o time mais forte do
país era o Schalke 04, clube da cidade mineira de Gelsenkirchen, no vale do
Ruhr. A ligação com a classe operária das minas de carvão foi um fator de
aproximação com setores populares e influenciou diretamente na escolha pelo Schalke,
que, a partir de então, passou a ter tratamento privilegiado em detrimento dos
rivais.
Portugal e Espanha, países que
viveram sob governos autoritários até a década de 1970, também tiveram o
futebol como mecanismo de popularização de seus regimes. Em Portugal o governo
de Salazar usou o Benfica como instrumento de propaganda. O clube sempre foi o
mais popular da capital Lisboa, antagonizando com o elitista Sporting. Na
década de 1960 o Benfica tinha um dos maiores jogadores do futebol mundial, o
moçambicano Eusébio. Mesmo sendo cortejado por gigantes de países mais ricos e
fortes do continente o “Pantera Negra” foi mantido no Benfica durante quase
toda a carreira com influência e financiamento do governo de Salazar. Nessa
época o Benfica acabou se consagrando bicampeão europeu e a seleção nacional
foi terceira colocada na Copa de 1966, tendo Eusébio como principal jogador
nessas ocasiões. Já na Espanha a ligação de Francisco Franco com o Real Madrid
nunca foi segredo. Durante seus anos de poder o clube “merengue” chegou a
ganhar o campeonato europeu por cinco vezes consecutivas. Foi nessa época que o
Barcelona, maior rival dos madridistas, se tornou uma representação política de
resistência do povo catalão. Até hoje os superclássicos são mais do que
partidas de futebol, são verdadeiros atos políticos entre os unitaristas de Madrid
e os independentistas de Barcelona. Recentemente, durante as manifestações pela
independência da Catalunha, um confronto entre as duas equipes foi adiado pelas
autoridades pelo alto risco de conflitos.
No Brasil os clubes de futebol mais
antigos, via de regra, tem sua formação ligada às elites econômicas.
Diferentemente do caso inglês, o esporte foi difundido no país como uma prática
lúdica e de diversão para os mais abastados, tanto que o amadorismo persistiu
até a década de 1930, época em que o profissionalismo já estava consolidado na
maior parte da Europa. O próprio processo de inserção das camadas populares,
principalmente do elemento negro, foi feito a contragosto dos que dominavam a
prática esportiva. Um exemplo característico foi o episódio em que um jogador
negro do Fluminense Futebol Clube, historicamente ligado à aristocracia
carioca, era obrigado a usar pó de arroz para disfarçar a cor da pele durante
os jogos. Com o tempo o clube romantizou esse ato de racismo e o nome pó de
arroz serve até hoje para designar carinhosamente o clube.
Durante a ditadura o futebol não
deixou de ser um instrumento utilizado como meio de manobrar o interesse
popular e invizibilização dos problemas que afetavam a classe trabalhadora.
Durante a década de 1970 o campeonato nacional chegou a ter mais de 90 equipes
inscritas. A crise no regime fazia com que lideranças políticas locais
barganhassem junto ao poder central apoio para que seus clubes entrassem no
campeonato, mesmo que como “sacos de pancada”. Diante dessa situação foi
cunhada a anedota que se tornou popular entre os setores que faziam a crítica a
ditadura: “Onde a ARENA vai mal, um time no nacional”.
Até hoje os clubes brasileiros são
controlados politicamente por personalidades ligadas ao empresariado e políticos
normalmente de direita. Muitos deles atuam como mecenas nos clubes de forma a
captar apoio entre as massas populares, além de ter acesso direto aos altos
recursos que os clubes recebem entre patrocínios e direitos de televisão. A
influência dessa classe de pessoas é grande na formação do jogador de futebol
enquanto indivíduo. Num país desigual como o Brasil o futebol é tido como tábua
de salvação para muitas famílias que investem desde cedo no sonho de ter um filho
jogando num grande clube, catapultando toda a parentela da condição de
vulnerabilidade social. O jogador de futebol médio no Brasil é uma empresa que
responde por muitas pessoas ao seu redor. Diante desse quadro, esses atletas
dificilmente concluem sequer o ensino básico, tendo em vista que a natureza da
profissão cobra dedicação total desde muito cedo. Naturalmente o meio acaba
fazendo desses indivíduos presas fáceis para que esses barões do futebol moldem
suas personalidades. Não é à toa que o jogador de futebol brasileiro é tido
normalmente como indisciplinado, arrogante, despolitizado e, quando se
posiciona politicamente, é a favor de políticos ligados a mesma linha dos que
controlam os clubes.
Com tudo isso o futebol não deixa
de ser um instrumento de mobilização popular com grande potencial para
subverter a ordem vigente. São exemplos internacionais clubes como o Sankt
Pauli da Alemanha, que é uma marca da contracultura naquele país. O clube localizado
num subúrbio de Hamburgo defende publicamente causas populares, antirracistas e
LGBT. Na Itália o Livorno, localizado na cidade de mesmo nome, é historicamente
ligado ao Partido Comunista. É comum durante seus jogos ver torcedores do time
estenderem símbolos ligados a luta operária. O atleta Lucarelli é um símbolo
histórico da pequena equipe que flutua entre a segunda e terceira divisões do
campeonato. Com passagem pela seleção nacional, Lucarelli abriu mão de
prestígio e dinheiro para dedicar grande parte da carreira ao Livorno e ao
comunismo. Na Espanha, o Rayo Vallecano, pequeno time situado em Vallecas,
distrito industrial de Madrid, também se destaca pelos laços afetivos entre
clube e comunidade, funcionando muitas vezes como mecanismo de apoio
comunitário.
Momentos históricos também servem
para definir o quanto o futebol pode ser instrumento de denúncia e libertação
das camadas oprimidas. Em 1980, durante a ditadura, o governo uruguaio se uniu
a FIFA para promover um mundialito. Durante o jogo final que deu o título a
seleção da casa, os torcedores gritavam em uníssono pelo fim da ditadura: “Se va acabar, se va acabar, la dictadura militar”. O evento que tinha como objetivo
desviar as atenções das massas e promover o regime acabou tendo efeito totalmente
contrário. A Copa de 1978 na Argentina, ao mesmo tempo em que foi utilizada
para promover o regime de Videla, expôs aos olhos do mundo sua ditadura
sanguinária. Na mesma Copa o jogador brasileiro Reinaldo comemorou um gol com o
braço em riste e o punho cerrado. O ato lhe custou um puxão de orelhas e a
orientação de não repetir a forma em outra ocasião, e a sua negativa lhe custou
a vaga no time. Se Reinaldo perdeu espaço na seleção, ao mesmo tempo tirou as
autoridades da zona de conforto, obrigando-os a criar um argumento pouco
convincente sobre a retirada do craque do Atlético Mineiro.
A Democracia Corintiana foi um
marco no processo de reabertura política no Brasil, antes que o regime
democrático fosse restaurado ela foi instituída por um breve período no clube
paulista. Num caso raro de encontro entre atletas com características que
fugiam ao lugar comum do futebol e diante de uma grande crise financeira, os
jogares conquistaram o direito de intervir nas decisões da dinâmica do clube.
Sócrates, um médico, Casagrande, um jovem libertário e Wladimir, um homem negro
e extremamente politizado eram as principais lideranças do movimento que, mesmo
contra as expectativas, levou o time a um bicampeonato paulista. Esses atletas
também se posicionaram durante o processo das Diretas Já!, o que os tornou
pessoas “perigosas” dentro das estruturas ainda militarizadas dos clubes de
futebol.
Atualmente vários movimentos de
torcedores denunciam o processo de elitização e embranquecimento das
arquibancadas. Como forma de “higienizar” o ambiente e tirar o pobre do estádio
de futebol os ingressos são cada vez mais caros e o perfil do torcedor,
consequentemente, cada vez mais reacionário. As vaias e xingamentos à então
presidente Dilma durante a Copa das Confederações em 2013 e a Copa do Mundo de
2014, realizadas aqui no Brasil, mostraram bem o nível desse “novo perfil” do
torcedor de estádio.
Em contraposição a esse processo, movimentos
de resistência têm surgido dentro das torcidas dos maiores clubes do país. Já
são vários os grupos de democratização da arquibancada e de torcidas
antifascistas. No início de novembro esses torcedores estiveram reunidos em
Porto Alegre no 1º Encontro Nacional Pelo Direito de Torcer, debatendo formas e
mecanismos de inserção das pautas populares na política interna dos clubes e
formulando meios de garantia do direito à livre manifestação nos estádios,
tendo em vista que é extremamente comum as forças de coerção do Estado usarem
de força e truculência para impedir que esses torcedores se manifestem
politicamente com faixas e adereços. Mesmo com todas as restrições e com a
repressão oficial, tem sido comum vermos em transmissões de futebol materiais
com críticas à Globo, que monopoliza as transmissões do esporte, e cobrando a
omissão do Estado em casos como o de Marielle. O “quem matou Marielle?” ou
“Quem mandou matar Marielle?” já circulou por vários estádios desse país.
Por fim, àqueles que criticam o
futebol a partir da sua cultura histórica e do uso majoritário da sua
visibilidade para os piores fins, devem considerar que existem outras formas de
uso do mesmo, podendo colocar nossas demandas também em evidência. Querendo ou
não o ambiente do futebol não é um espaço confinado, nem 100% controlado como
um estúdio de televisão. Devemos utilizar as suas brechas para, a partir delas,
construir uma saída popular para esse instrumento que também é parte da cultura
de um povo.
Nos últimos anos o mundo tem vivido a escalada política de uma extrema direita com modos fascistas. Esses grupos retomam e tratam com naturalidade valores, conceitos e práticas que erroneamente acreditávamos já terem sido superados definitivamente. Em muitos países essa movimentação tem alcançado maiorias legislativas e governos nacionais. O Brasil é um exemplo, diga-se de passagem.
Diante desse quadro crítico àqueles que prezam por valores democráticos, progressistas, libertários, socialistas e etc., devem ou deveriam se perguntar sobre o que fazer a partir de então para exercer um contraponto que tenha real efetividade, antes que a barbaridade e opressão ditem definitivamente a regra das relações sociais. Essa não é uma questão fácil e a análise da experiência histórica é central para encontrarmos uma resposta que coloque nossa ação no rumo correto.
Na primeira metade de século XX o mundo viveu duas guerras de proporções gigantescas e, vezes como causa outras como consequência, essas guerras proporcionaram ao mundo regimes sociais conduzidos de forma completamente antagônicas entre si.
O modelo fascista teve suas experiências mais significativas na Itália e Alemanha. Esses dois países tinham em comum o fato de suas unificações enquanto estado-nação ter acontecido apenas na segunda metade do século XIX, causando sérias dificuldades no processo de expansão de suas economias, principalmente durante o neocolonialismo que extorquiu África e Ásia durante aquele século. Uma das razões da Primeira Grande Guerra tinha como argumento a repartição desse butim. Dessa forma, Itália e Alemanha participaram da contenda como parte da Tríplice Aliança ao lado do Império Austro-húngaro, saindo derrotadas do conflito e humilhadas pelos termos do Tratado de Versalhes. A forma como o conflito foi dissipado reforçou uma série de discursos nacionalistas, principalmente entre os derrotados, que encontraram terreno fértil numa população violada, desesperançada e empobrecida. Foi nesse contexto que os regimes de caráter nazifascistas se desenvolveram a ponto de um novo conflito internacional eclodir duas décadas após o fim da Primeira Guerra.
Por outro lado, o mesmo conflito bélico foi uma janela de oportunidade para a ascensão de um modelo de sociedade antagônico ao fascismo. Na Rússia, desde o século XIX, uma série de mobilizações buscava pôr fim ao regime absolutista conduzido pela dinastia dos Romanov. Em 1917 a guerra debilitava as condições de vida da população ao mesmo tempo em que os privilégios da monarquia e das elites sociais eram preservados. Foi esse cenário que desencadeou o processo revolucionário conduzido pelo Partido Bolchevique, tomando o poder e derrubando o antigo regime imperial, instituindo anos depois a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Estado comunista de orientação marxista. Curiosamente, naquela época, compreendia-se que a consolidação do socialismo na Rússia seria uma contradição à ciência de Marx, tendo em vista que o necessário desenvolvimento das forças produtivas não seria suficiente naquele país até aquele momento.
Ao contrário do que diz o discurso hegemônico, a União Soviética foi a principal responsável pelo desfecho da Segunda Guerra, colocando por terra o projeto expansionista dos países do Eixo. Essa vitória permitiu por algumas décadas que o socialismo fizesse um contraponto constante à parte capitalista do mundo, exercendo uma espécie de freio ao caminho natural de espoliação do trabalho e concentração da riqueza promovido pelo modo de produção hegemônico. Diante disso, os países capitalistas foram obrigados a encontrar uma alternativa para que os povos sob seu controle não se sentissem estimulados a levar adiante processos revolucionários como ocorrido na Rússia, tendo em vista os níveis crescentes de melhoria nas condições de vida e avanços sociais proporcionados pelo comunismo. Essa alternativa dos capitalistas foi o chamado Walfare State, ou seja, a implementação de políticas de bem-estar social.
Enfim, qual o contributo dessa análise histórica na fundamentação de uma resposta ao questionamento do início do texto, tomando por base a nossa realidade contemporânea? A resposta é a seguinte: Não será rebaixando nossas pautas que conseguiremos reverter o quadro que está posto no Brasil. Não será nos aproximando do discurso hegemônico que nos tornaremos alternativa para a classe trabalhadora. É necessário que se realize a tão condenada polarização, pois, foi exatamente no momento histórico em que as vanguardas se puseram mais à esquerda do espectro político que a massa trabalhadora foi mobilizada a ponto de conquistar o poder real e assim avançar num verdadeiro processo de transformação social.
Algumas personalidades políticas têm se posicionado criticamente em relação a postura firme adotada por Lula desde que saiu da prisão. Por covardia ou conveniência elas defendem que Lula e o PT se adequem ao contexto e não se proponham à transformá-lo. Na verdade, essa postura tende a levar as massas ao caminho da capitulação definitiva, cabendo a nós combate-la até o fim.
A política nem
sempre é clara. Aliás, quase nada na política se apresenta de forma clara. Toda
avaliação deve partir do pressuposto de que o que emerge esconde uma série de
verdades não ditas, de interesses preservados, de cartas deixadas na manga.
Nos últimos dias os
embates diários entre o governo Bolsonaro e a Rede Globo tem levado muita gente
no campo da esquerda a fazer uma avaliação maniqueísta dessa crise. Ou seja, se
Bolsonaro representa tudo de pior que nos afeta, logo, quem se posiciona contra
Bolsonaro é nosso aliado. Na verdade, essa é uma avaliação equivocada. Nessa
disputa existe uma série de nuances, encontros e desencontros entre as pautas,
mas, de fundo, ambos trabalham em conjunto contra os interesses da classe
trabalhadora.
Lembremos que
Bolsonaro foi eleito, de certa forma, livre de compromissos com a grande mídia
corporativa. A gestação desse monstrengo foi resultado exatamente de uma
tentativa de desmantelamento moral do Partido dos Trabalhadores, o que acabou
afetando por tabela todas as instituições e partidos da política tradicional.
Como numa quimioterapia a tentativa de matar as células cancerígenas acaba
afetando também as sadias, debilitado o corpo e facilitando a ação de agentes
oportunistas. Foi nesse vácuo que o bolsonarismo se tornou uma corrente
política eleitoralmente viável. Para essa mídia, dentre elas a Globo, a eleição
de Bolsonaro se tornou opção a partir do momento em que ficou claro que as
candidaturas dos partidos tradicionais da direita não decolariam. Dessa
maneira, o candidato da extrema direita ganhou “gratuitamente” apoio
mútuo desse setor.
O que tem de mais intrigante
nesse jogo e que mais confunde as nossas interpretações está no fato da extrema
direita ter se apropriado de uma narrativa que era nossa. Quando chamam a Globo
de “Globolixo”, por exemplo, eles reverberam algo em comum com nosso
discurso, e que, de fato, corresponde à realidade. Em paralelo a isso o governo
Bolsonaro capitaliza as duas maiores rivais da Globo na TV aberta. SBT e Record
funcionam hoje como canais de propaganda do governo e do “clã
imperial”.
Esse quadro leva a
emissora carioca para um campo oposto, não ao governo como um todo, mas em
relação ao que a cultura bolsonarista pode lhe trazer de prejuízo a médio e
longo prazo (renovação da concessão). Esse fato fica claro nas paródias dos
humorísticos da emissora que estereotipam a figura do presidente e de sua
família, reforçando seus piores traços (não que haja neles algum traço
positivo).
Ao mesmo tempo em que a Globo alfineta Bolsonaro, como no caso do seu possível envolvimento no caso Marielle, ela endossa e avaliza as reformas e a pauta econômica do governo, que é o que nos afeta de forma mais grave. Dessa forma, não há como olharmos a emissora dos Marinho como aliada, muito pelo contrário. As suas divergências com o bolsonarismo devem ser capitalizadas a nosso favor no que for possível, mas sem perder de vista que ambos os lados são inimigos da classe trabalhadora e dos setores democráticos e progressistas.
Sendo assim, devemos
manter um comportamento crítico a ambos, Globo e bolsonarismo, sabendo
publicamente diferenciar as nossas razões das deles. Nossos motivos são muito
maiores e legítimos, completamente diferentes da cortina de fumaça levantada
pelo protofascismo bolsonarista.
Nos últimos dias o volume de insinuações,
postagens em redes sociais e declarações ameaçadoras feitas pelos integrantes
do clã Bolsonaro têm superado sua média histórica, que já era absurdamente
alta.
A semana começou com o vídeo postado no twitter
oficial do presidente, onde o mesmo é representado por um leão que reage
corajosamente ao ataque de uma alcateia de hienas. Entre as hienas estariam
partidos de esquerda (PT, PSOL), movimentos sociais (MST), corporações da
imprensa comercial (Globo) e instituições do Estado, como é o caso do STF. Em
determinado momento o leão (Bolsonaro) é acudido por um outro, denominado de
Conservador Patriota, e juntos eles vencem os inimigos que fustigam o corajoso
presidente.
Logo depois, para não perder o costume de afagar
o ego de seu eleitorado médio (conservador e machista), o presidente infere
publicamente que qualquer mulher se sentiria muito feliz em passar a tarde com
um príncipe. A declaração já seria imprópria e esdrúxula em qualquer circunstância,
mais ainda quando o príncipe em questão é acusado de uma série de crimes contra
a humanidade e mantém o regime mais persecutório às liberdades individuais de
todo mundo árabe (wahhabismo).
Num terceiro momento, depois do denuncismo do JN
e da reação extravagante do líder do clã na sua já tradicional live, seu filho
Eduardo flerta publicamente com uma nova versão do Ato Institucional Número
Cinco (AI-5), originalmente decretado em 1968 durante o regime militar e que
autorizava a cassação de mandatos e a supressão de direitos constitucionais,
colocando qualquer cidadão “não de bem” na mira da prisão e da tortura.
O vídeo das hienas e a fala do “Zero3” não devem
ser compreendidas como meras bravatas ou palavras ao vento. Mesmo que sua
eleição tenha sido fruto de uma fraude eleitoral, não se pode deixar de
considerar que o discurso dos integrantes da “famiglia” não comunga com um
regime onde o voto é tecnicamente soberano e do qual se valeram para alcançar o
poder que têm hoje.
Como no fascismo, eles elegeram seus inimigos
que, por tabela, são os inimigos da pátria e dos “cidadãos de bem” da nação, e
esses “cidadãos de bem” foram convocados a defender o líder que está disposto a
tudo para arrumar a bagunça que as “hienas” fizeram no Brasil, mesmo que seja
necessário passar por cima da lei.
O cálculo dos Bolsonaro mais do que ideológico é
estratégico. Eles têm a exata medida de que esse discurso, ainda efetivo junto
a seu eleitorado cativo, não resistirá ad
eternum diante da política de fome a que condenaram o povo brasileiro. A
médio prazo, o regime de democracia representativa não será mais viável a seus
objetivos, então, acabemos antes com a democracia.
O clã não fala só por si, nem tem acordo em todos
os pontos com todos os setores da política mais tradicional que endossam sua
pauta econômica. Porém, aqueles que defendem a democracia a partir dos
interesses concretos da vida do povo, principalmente do povo mais pobre, não
devem resumir sua ação aos protocolos legislativos, às notas de repúdio e às denúncias
ao judiciário. Havemos de convir que esses setores andam juntos em parte
importante da pauta bolsonarista e são agentes diretos do atual estado de
coisas.
O trabalho junto às bases sociais, ao lado da
classe trabalhadora e com os setores progressistas tem que ser feito de forma
urgente, para ontem! Antes que 64 nos pegue de surpresa novamente, numa manhã
qualquer.