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Max Weber e as três formas legítimas de dominação exercidas pelo Estado

Recentemente escrevemos neste espaço sobre o papel da ética protestante na construção do capitalismo numa perspectiva weberiana. O capitalismo (tipo histórico na visão de Weber) está totalmente conectado com as estruturas do Estado que, por sua vez, se legitima e se mantém através de relações de dominação sobre um conjunto de indivíduos que passam a pertencer a esta unidade.

Weber vivenciou diretamente o processo de formação do estado nacional alemão, escrevendo sobre temas que estão diretamente relacionados aos modelos de organização social que tomaram corpo na Europa desde o século XVI e que seguiram até sua etapa final de desenvolvimento no continente com a constituição dos estados burgueses alemão e italiano. Em paralelo a isso, o desenvolvimento do capitalismo e sua influência na organização desses estados nacionais e no modo de vida das sociedades submetidas a esse sistema econômico não passará despercebido aos olhos da sociologia weberiana. Em sua obra Weber vai identificar três formas de exercício da dominação pelo Estado.

A primeira diz respeito à dominação legal que é exercida através de um corpo de regras constituídas. Nela, determinados indivíduos são instituídos desse poder legal enquanto estão no exercício da função, não sendo posse absoluta de ninguém. Essa lógica de funcionamento é viabilizada a partir da edificação de uma burocracia típica do Estado moderno e das relações capitalistas, as quais, a partir de sua expansão, se desenvolvem cada vez mais em âmbito internacional.

O segundo tipo de dominação elencado por Weber é o que está baseado na tradição. Neste modelo, a lógica da “competência” presente na dominação legal não se faz necessária, sendo a fidelidade àquele que exerce o poder através da tradição a principal prerrogativa para o acesso às esferas do corpo administrativo. Dessa forma, as relações são baseadas na concessão de privilégios típicas de um modelo patriarcal oriundo ainda das sociedades estamentais. Nesse modelo, a obediência não se refere ao cargo, mas sim à pessoa que o exerce. Do ponto de vista prático, o tempo histórico em que Weber estava inserido vivia uma transição do modo de dominação tradicional para o legal, sendo um grande exemplo disso a própria Alemanha, que só consolidou sua unificação política num estado nacional burguês moderno em 1871.

Por último, Weber apresenta o tipo de dominação carismática, aquele que se exerce a partir de uma relação de santidade, de devoção, de afeto, entrando no campo da religiosidade e do espiritual. Comumente esse tipo de dominação está circundado por atos mágicos e de heroísmos. Inexiste a orientação através de qualquer nível de regramento, sedo a fé e o reconhecimento da figura do líder as prerrogativas suficientes e necessárias a cada súdito. Os modelos de dominação pela tradição e pelo carisma se entrecruzam e se confundem em determinadas situações.

Dentro desses três modelos de dominação tratados por Weber, o que está posto é a perspectiva de funcionamento do Estado como instrumento de controle social e não como um meio de regulação entre interesses diversos. O próprio Estado burguês, pautado pelas relações capitalistas, se configura como mais um meio para o exercício dessa dominação, tendo em vista que a ele cabe o monopólio do exercício da violência e da força como forma de garantir a manutenção de um determinado status quo.

Textos base: A ética protestante e o espírito do capitalismo e Os três tipos puros de dominação legítima, ambos de Max Weber

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O espírito do capitalismo e a ética protestante em Weber

No capítulo intitulado “O espírito do capitalismo”, que é parte do livro “A ética protestante e o ´espírito` do capitalismo”, o intelectual alemão Max Weber, que viveu no período de transição entre os séculos XIX e XX, vai traçar uma relação entre o desenvolvimento do sistema capitalista e a expansão do protestantismo, principalmente o de origem calvinista, na Europa e na América do Norte. Diferente da visão marxista, em Weber esse capitalismo não será tratado como um modo de produção, mas sim, como um tipo histórico.

A análise de Weber parte dos seguintes questionamentos: Por que o capitalismo se desenvolveu mais em países de origem protestante? E qual a ligação entre um modo de vida religioso e a cultura capitalista moderna? Weber conclui que a “fé reformada” foi responsável pelo desenvolvimento desse tal “espírito” capitalista, pois, diferentemente do catolicismo romano tradicional, que condenava as formas de lucro e a prática da usura, o protestantismo enxergava o lucro e a acumulação financeira como uma espécie de dádiva em que aqueles que obtivessem maiores ganhos econômicos também estariam “mais perto” de Deus.

Essa espécie de liberdade para a prática capitalista proporcionou a criação de uma série de valores específicos nesses países protestantes, viabilizando o desenvolvimento de um “racionalismo econômico” característico da cultura capitalista moderna. Sobre esse racionalismo Weber usa um texto de Benjamin Franklin, um dos principais artífices da independência das treze colônias do Norte, no qual podem ser encontradas “técnicas de avareza”.  Já no século XX, Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil”, sua obra mais disseminada, vai atribuir o baixo desenvolvimento comparativo entre a América de colonização ibérica e a de colonização saxônica à ausência dessa ética calvinista praticada no Norte pelos puritanos, a qual valorizava o trabalho mecânico e o desenvolvimento pessoal e da comunidade, enquanto que na América católica ainda se exercia o preconceito sobre as atividades manuais atribuídas aos indivíduos das baixas camadas sociais e aos escravos, além de que a acumulação de capitais deveria ser, naquelas sociedades, uma prerrogativa exclusiva da igreja e da nobreza.

Weber diz que esse “espírito” do capitalismo sempre existiu ao longo da história, porém, teve como adversário uma espécie de comportamento tradicionalista que funcionou como uma barreira ao ethos do capitalismo moderno, que foi quebrada a partir do surgimento da ética protestante. Um dos principais fatores para essa mudança de perspectiva ocorre a partir do momento em que o homem passa a enxergar o ganho financeiro não como um meio de garantir a sobrevivência, mas como uma finalidade em si, o que vai, inclusive, justificar a abnegação ao trabalho de forma quase que integral, abandonando qualquer forma de divertimentos que lhes tragam custos ao invés de acúmulo.

Apesar de Weber discordar do ponto de vista marxista acerca da natureza do sistema capitalista, existem algumas concordâncias em determinados conceitos, como o da mais-valia e do exército de reserva, mesmo que sem a utilização desses termos específicos.

Weber escreve sobre o tema a partir de um tempo histórico mais adiante, dessa forma, consegue manter uma distância temporal importante para uma melhor leitura e interpretação dos fatos. Neste sentido ele afirma que o capitalismo moderno já teria se emancipado do antigo suporte religioso, se encontrando em um outro estágio de seu exercício.

O trabalho de Weber deve sempre dialogar e ser confrontado com outras visões acerca desse amplo tema, mas é imprescindível para quem pretende interpretar o funcionamento da sociedade a apropriação da visão deste importante cientista.

REFERÊNCIA:

WEBER, Max. O espírito do capitalismo. In: A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004. (Capítulo 2)

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Duas visões liberais do Brasil a serem desconstruídas

Charge do Segundo Império que representa a relação entre a ala dos Luzias e a ala dos Saquaremas com o poder central

A história recente do Brasil tem sido pródiga na construção de imagens representativas do que seria o povo e o Estado brasileiro a partir de uma série de “reflexões” históricas da nossa formação social que, em tese, visam explicar o nosso quadro de permanente crise política, social e econômica.

Dentro dessa perspectiva dois artigos podem nos servir de ponto de partida para uma análise crítica dessas formulações. O primeiro foi escrito pelo advogado e cientista político Christian Edward Cyril Lynch e publicado às vésperas da eleição presidencial de 2014 pelo jornal carioca O Globo. O segundo é assinado pelo banqueiro e ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles (que ainda não havia sido ministro da fazenda), sendo publicado pela Folha de São Paulo em março de 2015.

Contextualizando o cenário em que Lynch produz sua reflexão, estávamos a dias da realização do segundo turno da eleição presidencial que reconduziu Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto, em uma disputa direta com o candidato Aécio Neves. Esse contexto consolidava a polarização eleitoral entre PSDB e PT, sendo o sexto pleito consecutivo decidido diretamente entre as duas agremiações partidárias.

O autor compara a plataforma dos dois partidos com a nomenclatura dada a grupos políticos originados desde antes da independência. Os Luzias, liberais “cosmopolitas”, teriam correspondência na conduta do PSDB, por enxergar no tamanho do Estado um problema ao avanço social que deveria ser conduzido pelo mercado. Enquanto os Saquaremas, que ansiavam por políticas nacional-desenvolvimentistas, estariam representados contemporaneamente pelo Partido dos Trabalhadores, porém, atribuindo especificamente ao PT a mácula da corrupção sistêmica.

O artigo de Henrique Meirelles condena o papel desempenhado pelo Estado brasileiro a partir da concepção de que o mesmo sempre interviu excessivamente nas relações socioeconômicas, desde o advento das Capitanias Hereditárias, construindo assim um paralelo com a conduta do Partido dos Trabalhadores no exercício do governo.

Convém situar a escrita do banqueiro no contexto político da época, que correspondia aos primeiros meses do segundo mandato de Dilma. Eleita por uma margem apertada de votos e ameaçada de sabotagem pelos adversários desde a confirmação da vitória nas urnas, a presidenta adotou a plataforma econômica derrotada como mecanismo de governabilidade, o que ficou claro na condução do banqueiro Joaquim Levy ao Ministério da Fazenda. Portanto, o artigo de Meirelles fazia parte de um conjunto de ações da direita e do mercado no sentido de aprofundar o direcionamento que estava sendo dado ao governo através do discurso de implantação de uma “nova matriz econômica”.

Os dois artigos reforçam estereótipos negativos sobre a função do Estado na sociedade, como o da corrupção enquanto condição sine qua non da atividade estatal, mesmo quando o conceito é utilizado de forma anacrônica. Ao mesmo tempo o liberalismo seria algo cosmopolita e virtuoso. Como se não bastasse, as perspectivas desconsideram elementos fundamentais da formação social do país, a exemplo do papel que o instituto da escravidão teve nesse processo, além de comparar recortes temporais completamente diversos, provocando uma descontinuidade temporal que compromete a veracidade da análise. Diante disso, é importante sermos críticos e firmes no exercício do contraponto, de maneira a não permitirmos que essas perspectivas se cristalizem como consensos sociais e determinem a visão da sociedade sobre ela mesma.

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Sindicatos e partidos políticos como instrumentos da luta de classes

O surgimento e desenvolvimento das sociedades regidas pelo modo de produção capitalista teve entre suas consequências o surgimento dos partidos políticos e das entidades de representação de classe (sindicatos). Em ambos os casos esses instrumentos se configuraram como formas de organização, resistência e intervenção dos indivíduos enquanto coletividade nas relações sociais.

Os sindicatos são fruto da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra em meados do século XVIII, que, por sua vez, foi possibilitada por duas condições prévias: Em primeiro lugar ao acúmulo de capitais proporcionado pelas relações mercantilistas desenvolvidas a partir das grandes navegações (metalismo), e em segundo ao elevado contingente de camponeses que se deslocaram para as áreas urbanas da Inglaterra depois da expulsão das terras comunais em favor da aristocracia (Lei dos Cercamentos). Essas duas condições, atreladas ao desenvolvimento tecnológico das formas de produção, com destaque para a introdução da máquina a vapor, resultaram num novo modelo pautado pela lógica da produção em massa e com menor participação do homem nas diferentes etapas do processo produtivo (alienação do trabalho), diferentemente da lógica de produção artesanal, predominante até aquele momento.

A expansão das fábricas corria em paralelo com o aumento da precarização das relações sociais, o nível de vida nas cidades era cada vez mais degradante, o que levou os trabalhadores a buscar novas formas de organização que lhes permitissem resistir à exploração do trabalho e conquistar melhores condições de vida e remuneração (salários).

Ao longo do tempo foram várias as formas em que os trabalhadores se organizaram, desde o movimento ludista, onde as máquinas utilizadas no processo produtivo eram sistematicamente sabotadas pelos trabalhadores que enxergavam nelas a causa da sua condição de precariedade, passando pelas sociedades de auxílio mútuo, que buscavam melhores formas de convivência com o capital sem questionar o sistema de classes, até chegarmos as sociedades de resistência e sindicatos, estruturas de organização que, se não combatiam diretamente a estrutura do modo capitalista de produção, pelo menos buscavam alternativas mais firmes de resistir a seus efeitos.

Em sociedades diferentes os sindicatos desenvolveram formas de organização diferentes, umas mais combativas, outras mais corporativistas e outras vezes em colaboração com o patronato. Independentemente disso, de maneira geral, é inegável o papel político desempenhado pelos sindicatos como meio de contraposição de forças na sociedade, atuando como um regulador do nível de exploração sofrido pelos trabalhadores dentro do modo hegemônico de produção.

Por sua vez, os partidos políticos têm uma origem mais remota, anterior ao desenvolvimento industrial, entretanto, eles ganham maior significância política com o surgimento do Estado Moderno, produto da ascensão da burguesia. Diante disso, os partidos vão se desenvolver a partir de duas perspectivas: ou como um instrumento da burguesia na sua atuação nas instâncias decisórias dos regimes republicanos e nas monarquias representativas, ou como mecanismos de organização e participação política de uma classe operária que já formulava seu posicionamento crítico e se reconhecia enquanto tal.

No Brasil, durante o Segundo Império, o parlamento se divide entre conservadores e liberais, que vão se constituir nas duas únicas forças partidárias até a posterior subdivisão dos liberais em republicanos. É fruto dessa estrutura a organização partidária do Brasil durante o início da Primeira República, ainda sem partidos que fizessem a disputa a partir do recorte da classe proletária, o que é fácil de ser compreendido, tendo em vista que a base da produção interna ainda era pautada por uma economia agrária e escravista, mantida até às portas do século XX. Dessa maneira, não existia até aquele momento as condições necessárias para o desenvolvimento de uma cultura operária e, consequentemente, de partidos que representassem tais interesses.

O desenvolvimento desses dois fenômenos típicos do capitalismo (sindicatos e partidos) se desenrola quase que concomitantemente nas primeiras décadas do século XX. O fato de que o modo de produção baseado no trabalho assalariado só tenha passado a ser a base do sistema econômico brasileiro praticamente no mesmo momento em que o país faz a transição do regime político monárquico para o republicano contribuiu para essa formatação. Dessa maneira, o desenvolvimento industrial, ainda que incipiente e concentrado em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, acontece concomitantemente à chegada de uma massa de imigrantes europeus que vinham de uma outra realidade social e com um nível de entendimento e participação política muito mais avançado, trazendo para o processo de formação da classe operária brasileira uma gama de ideias e formas de organização partidárias de esquerda que já eram consolidadas na Europa.

Muitas foram as influências políticas trazidas para o movimento dos trabalhadores no Brasil a partir das perspectivas anarquista e socialista. Com a fundação da seção brasileira do Partido Comunista, em 1922, o movimento socialista passou a aglutinar parte significativa dos anarquistas, inclusive militantes históricos, tornando-se com isso a ideologia política dominante no movimento partidário e sindicalista de esquerda.

No entanto, apesar de enxergarmos uma série de motivações e interesses em comum entre essas duas formas de organização (sindicatos e partidos), elas não são a mesma coisa nem buscam os mesmos propósitos em todas as situações. Um partido tem como prerrogativa principal intervir na dinâmica social a partir da estrutura do Estado, no caso da sociedade burguesa, dentro jogo eleitoral. Os sindicatos funcionam num espaço mais específico, como uma espécie de “subdisputa” política restrita a um determinado grupo, categoria, ou ramo de trabalhadores atingidos diretamente por essa disputa política maior travada no campo dos partidos e das instituições do Estado. Daí fomenta-se uma visão corporativista e exclusivista do papel do sindicato que é exercitada por aqueles que negam a existência do conflito de classes, com o claro intuito de que os trabalhadores não atentem para o que lhes aflige de forma comum, e assim não haja conexão entre as pautas de diferentes sindicatos, categorias e ramos.

Na perspectiva de um sindicalismo “cidadão” e engajado a disputa sindical é um braço da disputa política geral, estando subordinada a esse contexto maior, não se tornando um fim em si mesmo. Advém dessa lógica a comum interlocução entre movimentos sociais, centrais sindicais e partidos políticos, como ocorre, por exemplo, entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Sendo três movimentos diversos, de instâncias diferentes, mas que dialogam constantemente nas pautas que atingem a sociedade de forma ampla.

Em paralelo a isso ocorre o debate no sentido contrário em outras organizações do movimento sindical, as quais, pelo menos no discurso, atuam de maneira a negar veementemente essa relação, inclusive execrando-a. Buscando tratar a disputa sindical como forma de resistência aos efeitos do capital, sem contestar o modelo. Ou até de forma a colaborar com a manutenção do regime de exploração, atuando como uma camada de absorção de impactos reconhecida no mundo do trabalho como peleguismo.

Dessa maneira, temos que considerar que, apesar de serem espaços de luta e de construção social diferentes e com determinações específicas, as ações sindical e partidária estão concatenadas em diversos pontos, sendo essa ligação necessária para uma aglutinação de forças suficientes para o exercício da disputa de classes.

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Sobre o real significado das Capitanias Hereditárias

Em twitt recente o vice-presidente General Mourão fez uma referência homenageando o instituto das Capitanias Hereditárias. Para muitos de nós esse tipo de declaração desperta um certo estranhamento, devendo ser relativizada. Na verdade, as forças que governam o país adotaram um claro direcionamento no sentido de reconstruir a história a partir de valores que sejam coincidentes aos seus interesses políticos. Esse processo de inversão da realidade é necessário, tendo em vista que a política adotada é totalmente ofensiva aos interesses mais básicos e imediatos da maioria da população, dessa forma, o processo de “emburrecimento” coletivo é parte da garantia do controle das mentes e corações.

Sobre as Capitanias Hereditárias, o que de fato elas significaram na história da formação social do Brasil?

O processo de ocupação do que hoje conhecemos como Brasil foi iniciado pelo menos trinta anos após o achamento do território (achamento é um termo que a historiografia moderna tem utilizado no lugar de descobrimento, tendo em vista que não há descobrimento de algo que já existia e era ocupado por outras civilizações). Nessas primeiras três décadas a coroa portuguesa realizou uma série de incursões no sentido de explorar as riquezas e prospectar possibilidades de ocupação do solo. A necessidade de que esse processo ocupacional fosse realizado se ampliava na medida em que outras monarquias realizavam tentativas de ocupação do território, como no caso da França, a qual fundou a França Equinocial, no atual Maranhão e a França Antártica, na Baía de Guanabara.

Diante disso, as Capitanias significaram nada mais nada menos do que o loteamento do território em faixas para usufruto, exploração e administração por portugueses nobres e distintos que se comprometessem com o processo de ocupação territorial. Essas capitanias seriam repassadas de pais para filhos, ou seja, hereditariamente.  

Quando o vice-presidente elogia esse instrumento como um exemplo de empreendedorismo é claro que ele objetiva com isso agregar valor a um conceito que se tornou parte da vida cotidiana. O empreendedorismo é a tábua de salvação para as pessoas, todo mundo deve buscar ter seu próprio negócio e não esperar políticas públicas que viabilizem o vínculo empregatício formal. Esperar do Estado qualquer política nesse sentido é algo desprezível, coisa de gente preguiçosa e sem iniciativa própria. Sendo assim, a palavra empreendedorismo tem que estar atrelada a algo que tenha tido um suposto sucesso, como no caso das Capitanias.

Na verdade, as Capitanias Hereditárias são o primeiro exemplo do processo de construção de privilégios, onde uns poucos garantem acesso à terra, a renda, a educação, aos espaços decisórios, não por sua capacidade, mas por sua proximidade com as estruturas de poder. Processos como os que deram origem às Capitanias são perfeitamente observados até hoje, como quando o filho do mesmo General ascende a um cargo diretivo no Banco do Brasil pela pura e simples influência política do pai. Além disso, devemos lembrar que a efetiva ocupação do território pelas capitanias está diretamente ligada ao processo de implantação do regime escravista no Brasil colonial. Ou seja, todo o “empreendedorismo” dos donatários está associado diretamente ao tolhimento da liberdade e ao cativeiro de milhares de negros e negras escravizados por mais de três séculos. Sobre isso o twitt do general não fala.

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Uma análise sobre “O Príncipe”, de Maquiavel

Estátua de Maquiavel em Florença, de autoria do escultor Lorenzo Bartolini
 

A teoria política moderna, da qual nos valemos para realizar o exercício da análise dos fatos políticos passados e presentes, bebe diretamente na fonte das ideias e conceitos formulados durante o período renascentista no continente europeu na passagem entre os séculos XV e XVI pelo diplomata florentino Nicolau Maquiavel.

Maquiavel teve seu momento de maior prominência na vida pública durante o período de governo do gonfaloniere Piero Soderini sobre a república florentina, entretanto, após a restauração dos Médici, Maquiavel foi posto no ostracismo, sendo obrigado a viver recluso na periferia rural de Florença, nunca mais tornando a ocupar um posto de destaque na política local.

Foi durante esse período de reclusão forçada que o teórico escreveu seus textos de maior expressão como A arte da Guerra e Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Dentre essas, está a obra de ciência política mais lida e citada desde a História Moderna, “O Príncipe”. A escrita desse texto foi dedicada a Loureço de Médici, governante de Florença à época. Para alguns, esse ato significava a intenção clara e manifesta de Maquiavel em angariar politicamente seu retorno à estrutura governamental de Florença.

Em “O Príncipe”, Maquiavel constitui uma espécie de manual prático de como um soberano deve se comportar, com vistas a conquista e manutenção do poder, elencando uma série de características necessárias à boa prática da política. Ressalte-se que essa boa prática não está relacionada a valores que cultivamos no nosso tempo presente, onde o ente político é valorado pelas suas ações a partir de uma outra ética. Em função disso, pela prática equivocada de anacronismos históricos, a obra de Maquiavel é mal compreendida e mal conceituada por alguns, atribuindo ao autor ideias negativas que não lhe cabem dentro do seu tempo histórico.

Dois personagens desse período são citados por diversas vezes durante a escrita de O Príncipe. O primeiro deles é Rodrigo Bórgia, mais conhecido como o papa Alexandre VI. De origem espanhola, Bórgia, na condição de papa, era o governante dos estados papais, parte significativa do território da península itálica e figura ativa nas movimentações geopolíticas de conquista e perca de territórios na região. O segundo é César Bórgia, filho de Alexandre VI e proeminente comandante militar daquele período, atuando como o maior representante dos interesses da política expansionista de seu pai. César serviu de inspiração para o título da obra de Maquiavel, que reconhecia claramente a virtude presente em seu comportamento político e militar.

Nesse guia de ação política, Maquiavel irá romper com a tradição idealística clássica, pondo a natureza humana como elemento central do debate e da construção das formas de intervenção política. Num trecho do último capítulo de O Príncipe, o autor vai falar o seguinte, “ Deus não quer fazer todas as coisas, para não nos tolher o livre-arbítrio e parte daquela glória que nos cabe”. Esse trecho é sintomático sobre o momento de transição que caracteriza o período renascentista em que se desenvolve a superação do feudalismo, onde a cultura do pensamento humano estava fundada quase que totalmente em desígnios religiosos. Sendo assim, Maquiavel sugere a explicação da política através da própria política e não da religião.

De acordo com a característica de manual prático de conduta para o exercício da soberania que é O Príncipe, Maquiavel determina duas características que são condição sine qua non para o exercício da boa política, de acordo com os valores da época, são elas:a virtude e a fortuna. A virtude consistiria na capacidade que o soberano precisa ter no sentido de manter uma correlação de forças favorável para a manutenção do seu poder. Essa capacidade é a mais importante na concepção de Maquiavel, pois ela depende unicamente da aptidão do indivíduo em compreender a realidade concreta e trabalha-la da forma mais adequada a obtenção do sucesso. Por sua vez, a segunda característica apresentada é a da fortuna, que corresponde a capacidade do Príncipe em se aproveitar das condições favoráveis do ambiente, quando as mesmas existirem. Fazendo uma analogia simples, Maquiavel vai traduzir a fortuna como uma embarcação que se aproveita do vento favorável e direciona suas velas corretamente de forma a aproveitar totalmente o benefício do vento a favor, considerando, claro, que esta é uma condição que foge do controle da própria ação, cabendo apenas saber interpreta-la e tirar os proveitos possíveis.

Maquiavel vai dizer também que a política pode ser controlada até certo ponto, deixando um espaço para o imponderável, que pode agir de forma a comprometer a ação, por mais virtuosa que ela seja. Para diminuir as possibilidades de insucesso ao extremo, o autor apresenta duas facetas que devem fazer parte da personalidade do Príncipe. Para ele, o soberano deve ter ao mesmo tempo a força característica de um leão e a astúcia de uma raposa, devendo lançar mão de cada uma dessas características da forma e no momento adequados, pois, para ele, a força (leão) é o fundamento para a obtenção do poder, porém, a astúcia (raposa) é elemento necessário para a manutenção desse poder, conforme o seguinte trecho. “E, posto que é necessário a um príncipe saber usar do animal com destreza, dentre todas ele deve escolher a raposa e o leão, pois o leão não pode defender-se de armadilhas, a raposa é indefesa diante dos lobos; é preciso, pois, ser raposa para conhecer as armadilhas e o leão para afugentar os lobos”.

Sobre a condição do soberano em relação a seus súditos, durante a escrita são apresentados uma série de cenários em que se dá essa relação a parir da forma de regime e da maneira como se ascende à soberania. Dessa forma, entre ser amado e temido, Maquiavel aconselha que é favorável antes ser temido que amado, pois, pela natureza má do homem, segundo sua perspectiva, a capacidade de conservar o amor de seus súditos estará condicionada pelo cenário posto, sendo algo extremamente volátil. Enquanto que o temor não varia com o cenário, aumentando a possibilidade de controle da situação por parte do príncipe. Dito isso, deve-se ter cuidado para que esse temor não se transforme em ódio, pois, fomentar o ódio de seu povo é a condição mais crítica à manutenção do seu poder.

Por fim, Maquiavel faz a crítica a falta de centralização política da península itálica, a qual só foi unificada em medos do século XIX. Para o autor, essa é a principal razão para os contínuos espólios sofridos e citados na obra, principalmente por parte dos reinos da Espanha e França, países de unificação em estados nação bem anteriores à Itália. Maquiavel apresenta a necessidade de que Lourenço de Médici se ponha como o construtor dessa unificação nacional.

Como dito anteriormente, a interpretação literal da escrita de Maquiavel pode induzir ao erro na análise e no valor das suas teses. É importante que consigamos extrair o fundamento do que está além das suas palavras e, dessa forma, nos apropriarmos de um ganho teórico e interpretativo para na nossa melhor ação política cotidiana.

REFERÊNCIAS:

Maquiavel, Nicolau, 1469-1527. O Príncipe / Nicolau Maquiavel ; tradução de Maurício Santana Dias ; prefácio de Fernando Henrique Cardoso ; tradução dos apêndices de Luiz A. de Araújo. – São Paulo ; Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.

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A questão de classe no Brasil e o papel histórico representado pela “classe média”

A divisão da sociedade em classes é um produto da grande indústria e da consequente consolidação do modo de produção capitalista. Antes disso, os grupos sociais eram definidos através de estamentos, condição que impedia a mobilidade entre um e outro grupo social, ou seja, quem nascia servo morria servo, quem nascia nobre morria nobre. O desenvolvimento dessa nova forma de funcionamento da sociedade causou uma desordem nos estamentos de modo a permitir a quebra dessa estrutura fechada de sociedade.

O capitalismo industrial produziu a divisão dessa sociedade entre a classe proprietária dos meios de produção, responsável pela exploração da mais-valia, e a classe vendedora da força de trabalho, explorada e alienada das etapas criativas do processo, restando-lhe a execução das atividades operativas e mecânicas.

Não é só a indústria que aparece como reflexo do desenvolvimento de um capitalismo originado do mercantilismo e da acumulação primitiva de capitais, o Estado Moderno também se configura como resultado dessa dinâmica. Neste sentido, o controle das formas de produção industrial passa a ter um conjunto de atividades técnicas e administrativas entre o capitalista e o operário, assim como, no âmbito do Estado, cria-se uma burocracia responsável por regular a dinâmica econômica e social. Como consequência disso surgirá uma camada intermediária de indivíduos nesses dois setores que ao longo do tempo será denominada de classe média.

Em seu livro “A classe média no espelho”, o sociólogo Jessé Souza traça um quadro da formação social do Brasil. Segundo ele, a partir da terceira década do século passado a história dessa formação começa a ser delineada academicamente com a fundação da Universidade de São Paulo (USP), para isso, figuras como a de Sérgio Buarque de Holanda vão ter um papel determinante na consolidação de determinados traços culturais ligados a uma índole naturalmente corrupta trazida de Portugal durante o processo de colonização, o que teria comprometido determinantemente os nossos traços comportamentais até a contemporaneidade. Jessé Souza é veementemente crítico a essa posição, trazendo a definição do dito “homem cordial” como um mito que na verdade contribui para esconder as mazelas sociais resultantes da base escravocrata que norteou a história do país até o início da República, sem que depois houvesse qualquer política de reparação aos danos causados por esse processo, legitimando as suas consequências históricas.

A base de relações calcadas nas formas de privilégios e o compadrio se refletem até hoje na conduta de uma classe média que se comporta como representante direta dos interesses da elite do país contra o seu próprio povo, chegando a ser, muitas vezes, vítima econômica da própria subserviência.

Para Jessé o traço que melhor define o pertencimento à classe média não está baseado no poderio econômico momentâneo, mas sim nas relações constituídas e na posse de uma gama de conhecimentos intelectuais que permitem a perpetuação geracional nos espaços de privilégio. Enquanto isso, o que ele chama de ralé vende a preços módicos seu tempo em busca da sobrevivência, ao passo que a classe média utiliza esse tempo comprado à relé para aperfeiçoar os mecanismos que lhe propiciam o bem-estar, como define o autor: “Nada é mais importante nem mais característico da classe média do que a valorização do conhecimento”.

Diante desse quadro a classe intermediária da sociedade adota um comportamento base no sentido de se opor a qualquer alternativa política que possibilite a emancipação dos mais pobres, tendo em vista a necessidade de proteção dos seus espaços de privilégio e sua reserva de mercado. Um exemplo da demonstração desse tipo de comportamento pode ser visto  no longa metragem “A que horas ela volta? ”, da cineasta Anna Muylaert, onde a filha da empregada consegue ser aprovada no vestibular ao mesmo tempo em que o filho da patroa é reprovado, mesmo com todos os acessos que seu privilégio de classe concede. O fato desencadeia uma crise no ambiente da família a partir da não aceitação da realidade por parte da mãe do rapaz, que é patroa da mãe da garota. Essa ficção retrata comportamentos cotidianos que são facilmente perceptíveis em cada “lar” de classe média, onde os e as empregadas devem procurar “saber qual o seu lugar” naquela sociedade, limitando-se a cumprir as suas tarefas e preservar seu subemprego.

Neste sentido, a classe média acaba cumprindo um papel de autoproteção, pois ela se vê ideologicamente como os de cima, a parcela ínfima de verdadeiros poderosos que controlam a economia, o aparelho de justiça, os mecanismos de disseminação da informação, o setor financeiro e etc., procurando se distanciar da camada de empobrecidos, mantendo-os nesta condição para baratear seu custo e conseguir comprar seu tempo e sua força de trabalho a preços módicos, mantendo as relações de exploração tal como são desde o início da história da formação social do Brasil. 

 REFERÊNCIAS:

SOUZA, J. A classe média no espelho (2018). São Paulo: Ed. Sextante. (Cap: a construção da classe média brasileira)

A que horas ela volta?. Direção: Anna Muylaert, Produção: Anna Muylaert; Caio Gulanne; Fabiano Gullane; Débora Ivanov. Brasil, 2015.