Destaque

Golpe na Bolívia: uma prova de que democracia e neoliberalismo são conceitos totalmente antagônicos

Há poucas semanas Evo Morales foi eleito pela quarta vez presidente da Bolívia, porém, num espaço de tempo extremamente curto o cenário foi completamente modificado pela ação golpista da direita.

A Bolívia é um país situado geograficamente entre a floresta amazônica e a cadeia de montanhas dos andes. A ausência de uma saída para o Pacífico foi causa de um contencioso histórico com o Chile e até hoje é um sério limitador ao seu desenvolvimento.

A economia boliviana gira em torno da agricultura e da extração mineral. A produção de coca nas terras altas é a principal atividade econômica desenvolvida pelas populações originárias (indígenas). No campo da mineração se destacam as grandes reservas de gás natural que, até a chegada de Evo ao governo, eram exploradas pela Petrobrás em moldes imperialistas, o que levou seu governo a nacionalizar esse recurso, causando furor entre a mesma elite que aplaude quando o petróleo brasileiro é entregue de mão beijada às grandes multinacionais. Na ocasião, o posicionamento diplomático exercido pelo Brasil foi essencial para a manutenção de relações vantajosas para os dois lados, reconhecendo a soberania e o direito do povo boliviano sobre o gás, que, por sua vez, necessitava da manutenção de relações comerciais amplas com o Brasil, tendo em vista que somos o principal comprador da sua produção.

Num país que já foi governado por um presidente que falava castelhano com sotaque norte americano e que teve, no pleito recente, um candidato fundamentalista nascido na Coréia, Evo Morales se tornou em 2006 apenas o primeiro presidente da história boliviana de etnia indígena, fatos marcantes para um país onde mais da metade da população ainda pertence a grupos étnicos originários, e que indicam um histórico de dominação por interesses internacionais.

No campo social Morales implementou uma série de políticas que garantiram uma evolução extremamente significativa nos níveis de vida das camadas mais pobres da população. Nos últimos anos, com o avanço das políticas neoliberais no continente, a Bolívia vinha sendo o único país a sustentar índices de crescimento econômico e desenvolvimento social significativos.

A eleição realizada no final de outubro acabou se configurando no ponto crucial de inversão desse processo. A política de Evo vinha sendo cada vez mais combatida pelas elites econômicas do país, composta majoritariamente por uma população de origem europeia, descendente dos colonizadores. Em paralelo a isso, a ascensão de grupos religiosos (protestantes e católicos) fundamentalistas e inquisitoriais serviu como instrumento de mobilização para a política imperialista de jogar a democracia na lata do lixo quando ela não garante a manutenção dos seus privilégios.

A política dos governos de Morales durante esses mais de treze anos, obviamente, não está imune a questionamentos. O fato dele ter recorrido a uma nova reeleição, dentro das possibilidades legais, diga-se de passagem, pode ser interpretado como um equívoco político e um precedente, mas isso não serve como justificativa ao golpismo, tendo em vista que no campo liberal há uma série de exemplos de perpetuação no poder que não são questionados por quem levanta essa bandeira em relação ao caso boliviano. O principal aspecto a considerar para a instalação desse quadro desfavorável foi o rebaixamento da política de soberania. A forma como o governo sucumbiu rapidamente a partir da adesão das forças militares ao golpe indica a debilidade dos instrumentos populares de autodefesa, fator que até hoje tem garantido a manutenção da soberania popular na Venezuela, por exemplo. Ou seja, até aqui, o grande erro de Morales parece ter sido o de tratar o escorpião do imperialismo com republicanismo, acreditando que o mesmo não o atacaria quando se cansasse das regras do jogo. Um exemplo prático dessa ilusão se deu com a aceitação de recontagem de votos pela OEA, que, sem maiores explicações, de imediato indicou “irregularidades” no processo, dando o discurso que faltava a elite para levar a cabo sua rebelião.

Os fatos na Bolívia ainda estão em pleno acontecimento, muita coisa pode mudar a depender da capacidade de reação popular, mesmo que sem uma estrutura de contraposição à altura. Agentes externos com interesse direto na política do país (EUA, China, Rússia) podem de alguma forma modificar o tabuleiro desse jogo. Porém, o fato real é que o período de avanços sociais e de uma política nacional soberana capitulou à reação do império diante de mais um revés eleitoral. Esperamos que mais esse baque sirva para concluirmos de uma vez por todas que neoliberalismo e democracia são termos antagônicos, principalmente em tempos onde o capital extorque as últimas gotas do produto do trabalho, e que a defesa da real democracia, aquela que coloca acima de tudo os interesses da coletividade, não será possível sem que o povo tenha meios ideológicos e materiais para defende-la.

Destaque

Algumas linhas sobre a crise social no Haiti

As últimas semanas têm sido pródigas em acontecimentos (eleições) e insurgências que têm colocado em risco a política imperialista em vários países da América Latina e Caribe. O Haiti é mais um desses casos, mas que, diante volume de situações, pode passar despercebido do conhecimento de um público mais amplo.

O Haiti é um país caribenho localizado na margem oeste da Ilha de São Domingos. Na outra margem fica a República Dominicana. Como sabemos, o Haiti tem uma história sui generis entre países com formação de base escravista, realidade de toda a América Latina e Caribe. Enquanto os processos de independência se davam a partir da intervenção de uma elite local descendente dos colonizadores (criollos), o Haiti alcançou sua independência do julgo colonial francês a partir de uma revolução de escravos que instituiu a república no início do século XIX.

A exclusividade na forma como esse país alcançou sua independência lhe trouxe muito mais prejuízos do que vantagens históricas. As elites que controlavam os demais países não queriam o Haiti como um exemplo a ser seguido pelos povos subalternos do continente. Dessa maneira, o Haiti não deveria se constituir em um precedente para movimentos libertários.

No início dos anos 2000, depois da deposição do presidente Jean-Bertand Aristide, o país viveu sob intervenção da ONU através de uma “missão de paz” liderada pelo exército brasileiro que se estendeu até 2017. Como se não bastasse os problemas socioeconômicos e a intervenção estrangeira, que servia antes de mais nada para controlar a popução, em 2010 um forte terremoto colapsou ainda mais as condições do país.

Os fatos atuais servem antes de mais nada como prova de que as ditas “missões humanitárias” serviram apenas como instrumento de controle popular e não contribuíram em nada para que a realidade socioeconômica do país tivesse algum avanço concreto. O Haiti permanece sendo um dos países mais miseráveis do mundo e a geopolítica do petróleo levou o país nos últimos dias ao limite da insurreição contra o governo direitista de Jovenel Moïse.

O Haiti tem uma matriz energética extremamente limitada, sendo assim, o país depende fortemente da importação de petróleo e seus derivados, inclusive querosene, extremamente necessária a grande parte da população que não conta com rede de abastecimento de energia elétrica. Em 2005, sob o governo de Hugo Chaves, a Venezuela criou a Petrocaribe, uma aliança que forneceria petróleo e seus derivados a preços subsidiados aos vários países da região, inclusive ao Haiti. Durante esses anos a Petrocaribe possibilitou o escoamento de parte da produção venezuelana em benefício do desenvolvimento regional e de países que sempre foram quintal dos interesses econômicos dos Estados Unidos e suas corporações.

Na tentativa de enfraquecer a Venezuela e levar o governo de Nicolás Maduro ao colapso os Estados Unidos tem impingido uma série de sansões e embargos àquele país, fato que tem gerado impactos diretos nas possibilidades de comercialização de petróleo com os países vizinhos, afetando diretamente as operações da Petrocaribe. Em paralelo a isso, enquanto tiram a Venezuela do comércio na região, os Estados Unidos beneficiam suas grandes corporações, que passam a não ter concorrência vendendo seu petróleo a preços bem mais altos.

O atual governo do Haiti está totalmente alinhado às políticas imperialistas. Acordos com o Fundo Monetário Internacional têm resultado numa série de medidas econômicas que comprometem ainda mais o nível de vida dos haitianos. Diante desse quadro o povo tem ocupado às ruas e exigido a renúncia do presidente Moïse.

A grande mídia corporativa diz que a culpa do problema no Haiti é reflexo da crise na Venezuela, mas não diz que a crise na Venezuela é culpa de uma política de sabotagem econômica levada a cabo pelos Estados Unidos para desestabilizar país. O povo haitiano neste momento sofre duplamente, sofre com as consequências da sua dependência histórica e sofre com um governo completamente alinhado aos interesses americanos e que leva adiante uma política interna de fome.

Diante desse quadro, o povo haitiano se encontra nas ruas exigindo a renúncia imediata de Jovenel Moïse.

Destaque

Chile: O bastião do discurso liberal na América Latina está em xeque

O Chile é talvez o país sul-americano de formação geográfica mais interessante, pois ocupa uma estreita faixa de terra em sentido norte-sul que segue o formato da cadeia de montanhas dos Andes desde o extremo sul do continente até sua fronteira com Peru e Bolívia. O país banhado pelo Oceano Pacífico tem a maior parte da sua população concentrada na região central, em virtude da presença do Deserto do Atacama ao norte e da Patagônia ao sul.

Na economia o Chile se destaca principalmente pela extração do cobre. O país produz mais de 30% de todo o volume mundial desse metal, que é responsável por quase metade dos capitais que abastecem sua economia. Em 1971 o governo socialista de Salvador Allende estatizou a exploração do cobre criando assim a CODELCO, companhia nacional que substituiu uma série de multinacionais estrangeiras que exploravam a maior riqueza do país de acordo com interesses estranhos ao povo chileno.

A Batalha do Chile” é um documentário em três partes dirigido por Patricio Guzmán, nele estão registrados os principais momentos desde a eleição de Allende até sua queda para as forças militares.

Analisar a condição política desse país na atualidade nos obriga a um retorno na história pelo menos até a virada entre as décadas de 1960 e 1970. Salvador Allende, um médico de classe média, foi eleito em 1970 por uma coalização de partidos chamada Unidade Popular (UP). Assim como os demais países latino americanos o Chile era controlado por uma elite oligárquica diretamente ligadas aos interesses estrangeiros. Neste sentido, o regime eleitoral previa a necessidade de maioria congressual além de eleitoral, num claro mecanismo de controle da vontade popular. Diante disso, a vitória apertada do socialista foi contestada pelas forças reacionárias que, desde o primeiro momento, passaram a sabotar sistematicamente seu governo.

O governo da UP resistiu até 1973, quando a política imperialista levada a cabo pelas oligarquias e forças armadas locais colocaram em prática o processo golpista. O general Augusto Pinochet, até então homem de confiança do presidente, foi o responsável pela execução do golpe que assaltou o Palácio de La Moneda, sede do governo, em 11 de setembro. Naquela ocasião Salvador Allende decidiu permanecer no prédio, resistir ao ataque e não se render, o que lhe custou a vida.

A ditadura militar chilena era então instalada num contexto internacional de crise. O Walfare State do pós-guerra estava em baixa, a crise do petróleo tencionava os ânimos do mercado e a economia planificada do socialismo soviético não atendia mais a melhora nos níveis de vida alcançados em outros tempos. Nesse quadro o Chile acabou sendo utilizado como laboratório para a retomada do liberalismo econômico a nível mundial. A “Escola de Chicago”, corrente do pensamento econômico desenvolvida nos Estados Unidos, foi responsável pela implementação de uma série de planos que restringiram o acesso da população a direitos sociais como saúde e educação, além da desestatização do regime previdenciário, instituindo a lógica da capitalização. Tais medidas garantiram o crescimento econômico às custas do empobrecimento da classe trabalhadora e do aumento exponencial da desigualdade social.

“Machuca” é um drama de 2004 dirigido por Andrés Wood, onde dois garotos de classes sociais totalmente antagônicas constroem uma relação de amizade. O filme denuncia os níveis absurdos de desigualdade social produzidos pela ditadura de Pinochet.

Em 1988 a ditadura chega ao fim no Chile de uma forma bastante questionável, sem um verdadeiro acerto de contas com o passado, a partir da realização de um plebiscito que decidiria se a população outorgaria mais oito anos de um mandato “democrático” a Pinochet, ou não. Obviamente o regime não tinha entre nos seus planos outro resultado além do “Sim” a ditadura, tamanho era o risco corrido por qualquer um que se manifestasse publicamente contra. Além do uso da fraude, o que, de certo modo, ficou inviabilizada pelo contexto internacional, tendo em vista que as ditaduras fardadas já haviam saído de cena em quase toda a América Latina. Elas já não eram mais necessárias ao imperialismo, que precisava de uma face mais humanizada para manter seus níveis de exploração com menos contestação social.

O filme “No”, estrelado por Gael García Bernal e dirigido por Pablo Larrain, se passa durante o processo de realização do plebiscito que decidiu pelo fim do governo Pinochet. Bernal interpreta um publicitário, filho de um exilado, que produz a campanha surpreendentemente vitoriosa do Não.

Essa ruptura pacificada cobrou do povo chileno a manutenção de toda uma estrutura liberal na economia que não permitiu significativos avanços sociais. As pautas dos partidos de esquerda acabam sendo muito semelhantes às dos partidos que se identificam a direita do espectro político. Dessa forma, sobra mais dúvidas do que respostas sobre os caminhos e os mecanismos que as classes baixas chilenas têm a seu favor na disputa pelos seus interesses mais imediatos.

Na verdade, o que acontece hoje no Chile é que a política neoliberal ultrapassou todo o limiar de aceitação da exploração social. O aumento das tarifas no transporte somente acendeu um pavio que não tinha mais o que queimar. Essa situação, inclusive, serve de contradiscurso ao mito que os setores conservadores sempre utilizaram para descrever o Chile como um oásis de prosperidade e paz social na América Latina.

Hoje, a “Suíça” sul-americana escancara sua verdadeira face.

Destaque

Sobre a crise política e social no Equador

Desde o começo de outubro o Equador foi tomado por uma série de mobilizações populares que, desde então, só tem aumentado de tamanho. A grande mídia intensifica o discurso de que o governo de Lenín Moreno sofre uma crise interna por conta do fim dos subsídios aos combustíveis, o que tem encarecido os derivados de petróleo em mais de 100%. Porém, o que os meios de comunicação hegemônicos não falam é que essa medida significa apenas a gota d’água que fez transbordar o copo.

Moreno foi eleito presidente do Equador em 2017 na esteira dos governos progressistas de Rafael Correa, de quem havia sido vice-presidente. Após eleito Moreno simplesmente rasgou o programa de governo que o havia eleito, traindo a população. Rafael Correa, por sua vez, encontra-se exilado em Bruxelas, na Bélgica, devido uma acusação de suborno. O poder judiciário equatoriano, apoiado politicamente por Moreno, se comporta nesse caso como um mero assistente executor dos interesses do imperialismo.

Ocorre de fato que o povo equatoriano tem sofrido desde 2017 um processo contínuo de precarização das condições de vida, tal qual ocorre no Brasil desde o Golpe parlamentar que elevou Michel Temer a presidência da república, em 2016. Os níveis de pobreza só aumentaram no país andino desde que uma série de reformas de caráter neoliberal foram implementadas por exigência de organismos internacionais como o FMI.

A reação da população responde a todos os ataques que ela vem sofrendo durante os últimos dois anos. Movimentos populares, indígenas e de trabalhadores já conseguiram fazer com que as forças do Estado perdessem o controle de Quito, capital do país, transferindo o governo para Guayaquil.

Neste momento o governo ainda conta com o apoio e a fidelidade das forças armadas, além, é claro, do imperialismo internacional, o que nos deve deixar atentos e cautelosos em relação a sequência dos fatos. Porém, é inegável que a reação do povo equatoriano mostra que há um caminho bem claro a ser seguido por aqueles que prezam pela justiça social e pela soberania dos povos, e esse caminho não passa por acordos institucionais com o golpismo e com o entreguismo. Que a mobilização no Equador até este momento sirva de exemplo para a esquerda brasileira.